VAZA-JATO: NOVOS DIÁLOGOS SUGEREM QUE MORO ORIENTAVA ILEGALMENTE AÇÕES DA LAVA JATO
As manifestações do último dia 30 tiveram como principal
objetivo a defesa de Sergio Moro. Em Brasília, um enorme boneco de Super-Homem
com o seu rosto foi inflado na frente do Congresso. Símbolo da Lava-Jato, que
representa um marco na história da luta anticorrupção no país, o ex-juiz vem
sofrendo sérios arranhões na imagem desde que os diálogos entre ele e membros
da força-tarefa vieram a público revelando bastidores da operação. As conversas
ocorridas no ambiente de um sistema de comunicação privada (o Telegram) e
divulgadas pelo site The Intercept Brasil mostraram que, no papel de
magistrado, Moro deixou de lado a imparcialidade e atuou ao lado da acusação.
As revelações enfraqueceram a imagem de correção absoluta do atual ministro de
Jair Bolsonaro e podem até anular sentenças.
No material que o Intercept diz ter recebido de uma fonte
anônima, há quase 1 milhão de mensagens, totalizando um arquivo com mais de
30 000 páginas. Só uma pequena parte havia sido divulgada até agora — e ela foi
suficiente para causar uma enorme polêmica. Em parceria com o site, VEJA
realizou o mais completo mergulho já feito nesse conteúdo.
Foram analisadas pela reportagem 649 551 mensagens. Palavra
por palavra, as comunicações examinadas pela equipe são verdadeiras e a
apuração mostra que o caso é ainda mais grave. Moro cometeu, sim,
irregularidades. Fora dos autos (e dentro do Telegram), o atual ministro pediu
à acusação que incluísse provas nos processos que chegariam depois às suas
mãos, mandou acelerar ou retardar operações e fez pressão para que determinadas
delações não andassem. Além disso, revelam os diálogos, comportou-se como chefe
do Ministério Público Federal, posição incompatível com a neutralidade exigida
de um magistrado.
Na privacidade dos chats, Moro revisou peças dos
procuradores e até dava bronca neles. “O juiz deve aplicar a lei porque na
terra quem manda é a lei. A justiça só existe no céu”, diz Eros Grau,
ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, falando em tese sobre o papel de um
magistrado. “Quando o juiz perde a imparcialidade, deixa de ser juiz.”
Não seria um escândalo se um magistrado atuasse nas sombras
alertando um advogado de que uma prova importante para a defesa de seu cliente
havia ficado de fora dos autos? Pois isso aconteceu na Lava-Jato, só que em
favor da acusação. Uma conversa de 28 de abril de 2016 mostra que Moro orientou
os procuradores a tornar mais robusta uma peça. No diálogo, Deltan Dallagnol,
chefe da força-tarefa em Curitiba, avisa à procuradora Laura Tessler que Moro o
havia alertado sobre a falta de uma informação na denúncia de um réu — Zwi
Skornicki, representante da Keppel Fels, estaleiro que tinha contratos com a
Petrobras para a construção de plataformas de petróleo, e um dos principais
operadores de propina no esquema de corrupção da Petrobras. Skornicki tornou-se
delator na Lava-Jato e confessou que pagou propinas a vários funcionários da
estatal, entre eles Eduardo Musa, mencionado por Dallagnol na conversa. “Laura
no caso do Zwi, Moro disse que tem um depósito em favor do Musa e se for por
lapso que não foi incluído ele disse que vai receber amanhã e da tempo. Só é
bom avisar ele”, diz. (VEJA manteve os diálogos originais com eventuais erros
de digitação e ortografia.) “Ih, vou ver”, responde a procuradora. No dia
seguinte, o MPF incluiu um comprovante de depósito de 80 000 dólares feito por
Skornicki a Musa. Moro aceita a denúncia minutos depois do aditamento e, na sua
decisão, menciona o documento que havia pedido. Ou seja: ele claramente ajudou
um dos lados do processo a fortalecer sua posição.
Em sua defesa após o estouro do escândalo das mensagens, o
ministro vem repetindo que atendia tanto os encarregados da acusação quanto os
da defesa no dia a dia e tinha conversas com eles, nenhuma delas imprópria, na
sua visão. De fato, está na rotina de um juiz receber as partes envolvidas no
processo, mas de maneira oficial, sempre com registro, e não por meio de um
sistema privado de comunicação. A posição do ex-juiz fica ainda mais difícil de
defender diante dos dados analisados pela parceria VEJA/The Intercept. Não eram
conversas protocolares entre juiz e Ministério Público. Do conjunto, o que se
depreende, além de uma intimidade excessiva entre a magistratura e a acusação,
é uma evidente parceria na defesa de uma causa. Os exemplos mais robustos vêm
das conversas entre Moro e Dallagnol. Em 2 de fevereiro de 2016, por exemplo,
o juiz escreve a ele: “A odebrecht peticionou com aquela questao. Vou
abrir prazo de tres dias para vcs se manifestarem”. Dallagnol agradece o
aviso. Moro se refere ao questionamento da Odebrecht à Justiça da Suíça a
respeito do compartilhamento de dados, incluindo extratos bancários, da empresa
naquele país. Grosso modo, a empreiteira tentou impedir que o Ministério
Público suíço enviasse dados à força-tarefa. Preocupado com a história, Moro
pede notícias a Dallagnol no dia 3. “Quando sera a manifestação do mpf?”,
pergunta. “Estou redigindo, mas quero fazer bem feita, para já subsidiar os HCs
que virão. Imagino que amanhã, no fim da tarde”, responde o procurador. No dia
seguinte, Dallagnol informa a Moro que a peça estava quase pronta, mas
dependia ainda da revisão de colegas. “Protocolamos amanha, salvo se for
importante que seja hoje. Posso mandar, se preferir, versão atual por aqui,
para facilitar preparo de decisão”, escreve. Moro tranquiliza Dallagnol: “Pode
ser amanha”. No dia 5, prazo final, por volta das 15 horas, Dallagnol manda
pelo Telegram ao juiz a peça “quase pronta”. A situação é completamente
irregular. Em vez de se comunicarem de forma transparente pelos autos, juiz e
procurador usam o Telegram. Como se não bastasse, o chefe da força-tarefa
ainda envia a Moro uma versão inacabada do trabalho para que o juiz possa
adiantar a sentença.
Dentro da relação estabelecida pela dupla, chama atenção
também o momento em que Dallagnol dá dicas ao “chefe” sobre argumentos para
garantir uma prisão. Isso aconteceu em 17 de dezembro de 2015, quando Moro
informa que precisa de manifestação do MPF no pedido de revogação da prisão
preventiva de José Carlos Bumlai, pecuarista e amigo de Lula. “Ate amanhã meio
dia”, escreve. Dallagnol garante que a ação será feita e acrescenta: “Seguem
algumas decisões boas para mencionar quando precisar prender alguém…”.
À luz do direito, é tão constrangedor quanto se Cristiano Zanin Martins
fosse flagrado passando a Moro argumentos para embasar um habeas-corpus a
favor de Lula.
Mesmo entre parceiros com bastante afinidade há momentos de
tensão (e que precisam ser resolvidos com uma conversa ao vivo). Em um deles,
ocorrido em um chat de 17 de novembro de 2015, Moro dá um puxão de orelha em
Dallagnol. O juiz reclama de que está difícil entender os motivos pelos quais
o MPF recorreu da sentença aplicada aos delatores Augusto Ribeiro de Mendonça
Neto, Pedro José Barusco Filho, Mário Frederico Mendonça Góes e Júlio Gerin de
Almeida Camargo. Dallagnol tenta se justificar, sem sucesso. “O mp está
recorrendo da fundamentação, sem qualquer efeeito pratico”, critica o juiz. “Na
minha opinião estao provocando confusão.” Para Moro, o efeito prático do
recurso apresentado pelo MPF será “jogar para as calendas a existência execução
das penas dos colaboradores”, ou seja, postergará o início do cumprimento da
pena aplicada aos delatores citados. Mais uma vez, tudo fora dos autos. Dallagnol,
resignado, pede um encontro com Moro para a manhã do dia seguinte: “25m seriam
suficiente (sic)”.
Peças fundamentais na Lava-Jato, as delações exigem também
que o juiz se comporte de forma imparcial e somente após as negociações,
conduzidas pelo MPF, pois ao fim do processo caberá a ele decidir se aceita ou
não a oferta. Nesse capítulo, Moro cruzou igualmente a linha, a exemplo do caso
do ex-deputado Eduardo Cunha. Na noite de 12 de junho de 2017, Ronaldo Queiroz,
procurador da força-tarefa da Lava-Jato na PGR, cria um grupo no Telegram com
Dallagnol para avisar que foi procurado pelo advogado de Cunha para iniciar
uma negociação de delação premiada. Queiroz afirma que as revelações poderiam
ser de interesse dos procuradores de Curitiba, Rio de Janeiro e Natal, onde
corriam ações relacionadas ao político. Após membros do Rio de Janeiro serem
incluídos no grupo, Queiroz posta uma mensagem que dá uma ideia de sua visão de
mundo sobre a quantidade de honestos na Justiça e na política (uma visão de
mundo compartilhada por muitos de seus colegas da Lava-Jato). Queiroz afirma
esperar que Cunha entregue no Rio de Janeiro, pelo menos, um terço do
Ministério Público estadual, 95% dos juízes do Tribunal da Justiça, 99% do
Tribunal de Contas e 100% da Assembleia Legislativa.
No dia 5 de julho, durante o período da tarde, os
procuradores concordam em marcar uma reunião com o advogado Délio Lins e Silva
Júnior para a terça-feira seguinte (11 de julho). Naquele mesmo dia, às 23h11,
em uma conversa privada, Moro questiona Dallagnol sobre rumores de uma delação
de Cunha. “Espero que não procedam”, diz. Dallagnol afirma que tudo não passa
de rumores. Ele confirma ao juiz que está programado apenas um encontro com o
advogado para que os procuradores tomem conhecimento dos anexos. “Acontecerá na
próxima terça. estaremos presentes e acompanharemos tudo. Sempre que quiser,
vou te colocando a par”, afirma. Moro, então, reitera seu posicionamento.
“Agradeço se me manter (sic) informado. Sou contra, como sabe.” Detalhe: isso
sem saber o conteúdo.
Como a proposta de delação atingia políticos com foro
privilegiado, a palavra final para assinar um acordo de delação com Cunha
passou para a PGR. A homologação competia ao ministro Luiz Edson Fachin,
relator da Lava-Jato no STF. O ex-deputado corria na época para fechar um
acordo antes de o doleiro Lúcio Bolonha Funaro assinar os termos de sua
delação. Os procuradores envolvidos nas negociações diziam que a dupla falava
sobre os mesmos temas, o que tornaria desnecessária a aprovação das duas
colaborações. No dia 28 de julho, já com os anexos de Cunha em mãos, Ronaldo
Queiroz diz que a ideia é analisá-los em conjunto com os colegas para tomar
uma decisão sobre aceitar ou rejeitar a delação. Em 30 de julho, Queiroz diz
que o material é fraco. No dia seguinte, uma mensagem do procurador Orlando SP,
provavelmente Orlando Martello Júnior, traz o posicionamento de Curitiba — o
mesmo de Moro: “Achamos que o acordo deve ser negado de imediato”.
O papel de líder da Lava-Jato em Curitiba é exercido em
diversas oportunidades pelo ex-juiz. Em mais de uma ocasião, Moro aparece nos
chats do Telegram interferindo na agenda dos procuradores da força-tarefa, outra
atitude que gera a suspeição de qualquer magistrado. Em 7 de julho de 2015, por
exemplo, um membro da força-tarefa, que a reportagem de VEJA identificou ser o
procurador Carlos Fernando dos Santos Lima, escreve o seguinte: “Igor. O Russo
(Moro) sugeriu a operação do professor para a semana do dia 20”. Igor (o
delegado da Polícia Federal Igor Romário) responde: “Opa… beleza… Vou começar a
me organizar”. De acordo com a apuração da revista, o “professor” era o
almirante Othon Luiz Pinheiro da Silva, da Eletronuclear. Ele acabou sendo
preso no dia 28. Em outro episódio, Moro não apenas sugere uma data para a
operação como também já fala em receber a denúncia. O caso em questão aparece
em um diálogo ocorrido em 13 de outubro de 2015. Nele, o procurador Paulo
Galvão, o PG, alerta Roberson Pozzobon, seu colega da força-tarefa, sobre uma
orientação do juiz. “Estava lembrando aqui que uma operação tem que sair no
máximo até por volta de 13/11, em razão do recesso e do pedido do russo (Moro)
para que a denúncia não saia na última semana”, escreve PG. “Após isso, vai
ficar muito apertado para denunciar.” Pozzobon concorda com PG e acrescenta:
“uma grande operação por volta desta data seria o ideal. Ainda é próximo da
proclamação da república. rsrs”.
A partir de um levantamento das operações ocorridas em
novembro e das denúncias oferecidas em dezembro de 2015, chega-se à conclusão
de que o diálogo trata da Operação Passe Livre, que prendeu José Carlos Bumlai.
Ele atuou como laranja do PT, intermediando um empréstimo de 12 milhões de
reais do Banco Schahin ao partido em 2004. O pedido de Moro comentado na
conversa entre PG e Pozzobon acabou cumprido à risca. Bumlai foi preso em 24 de
novembro e denunciado em 14 de dezembro — na última semana antes do recesso da
Justiça Federal do Paraná. No dia seguinte, Moro recebeu a denúncia, a tempo de
impedir que os crimes prescrevessem no fim de 2015.
Dentro de uma visão simplista, a estratégia parece um golpe
de mestre do juiz para não deixar um bandido escapar da Justiça. Mas o
argumento de que os fins justificam os meios não pode prosperar numa sociedade
desenvolvida. Tal postura de Moro viola o devido processo legal, pondo em risco
o estado de direito. “Nesse caso, a sociedade pode aplaudir o juiz, por
acreditar que ele está tentando ser justo. Mas ele está infringindo as leis do
processo, que o impedem de imiscuir-se em uma das partes e colaborar com ela, e
é uma das garantias para que todos sejam julgados da mesma forma”, afirma um
juiz, que pediu para não ser identificado. “Imagine que todos os magistrados
atuem da mesma forma, infringindo uma regra aqui e outra ali para alcançar seus
objetivos. Um pode se aliar à defesa para soltar um criminoso; outro pode se
aliar à acusação para perseguir um inimigo e, aí, o céu é o limite”, conclui.
Uma das obsessões de Moro envolvia manter os casos da
Lava-Jato em seu poder em Curitiba, a exemplo dos processos de Lula do tríplex
do Guarujá e do sítio de Atibaia. Nesse esforço, o magistrado mentiu a um
ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) ou, na hipótese mais benigna,
ocultou dele uma prova importante, conforme mostra um dos diálogos. A conversa
em questão se refere ao caso de Flávio David Barra, preso em 28 de julho de
2015, quando presidia a AG Energia, do grupo Andrade Gutierrez. Sua detenção
ocorreu na Operação Radioatividade, relacionada a pagamentos de propina feitos
por empreiteiras, entre elas a Andrade Gutierrez, a Othon Luiz Pinheiro da
Silva, da Eletronuclear, responsável pela construção da usina nuclear Angra 3.
Em 25 de agosto, a defesa de Barra pede ao ministro do STF Teori Zavascki a
suspensão do processo tocado pela 13ª Vara de Curitiba, alegando que Moro não
tinha competência para julgar o caso por haver indício de envolvimento de
parlamentares, entre eles o então senador Edison Lobão (MDB-MA).
Diante da reclamação, Zavascki cobra explicações de Moro,
que diz não saber nada sobre o envolvimento de parlamentares. Mesmo assim, com
base nas informações da defesa, o ministro do STF suspende em 2 de outubro as
investigações, o que força o então juiz a remeter o caso de Curitiba para
Brasília três dias depois. Seu comportamento perante Zavascki foi impróprio,
como evidencia um diálogo registrado no Telegram dezoito dias depois entre o
procurador Athayde Ribeiro Costa e a delegada Erika Marena, da Polícia Federal.
Costa diz precisar com urgência de uma “planilha/agenda” apreendida com Barra
que descreve pagamentos a diversos políticos. Marena responde que, por
orientação de “russo” (Moro), não tinha tido pressa em “eprocar” a planilha
(tradução: protocolar o documento no sistema eletrônico da Justiça). “Acabei
esquecendo de eprocar”, disse. “Vou fazer isso logo”, completa.
Na pior das hipóteses, Moro já sabia da existência da
planilha quando foi inquirido por Zavascki e mentiu ao ministro. Em um segundo
possível cenário, igualmente comprometedor, Moro teria tomado conhecimento da
planilha depois da inquirição de Zavascki e pediu à delegada para “não ter
pressa” em protocolar o documento. Tudo indica que a manobra tinha como
objetivo manter o caso em Curitiba. “Um juiz não pode ocultar provas, e, se o
diálogo tiver a autenticidade comprovada, estamos diante de uma conduta
bastante problemática”, afirma o advogado Gustavo Badaró, professor de processo
penal da USP, que analisou a pedido de VEJA o episódio. Na primeira leva de
mensagens divulgadas pelo Intercept no mês passado, Moro já aparecia reclamando
de um delegado da PF que havia incluído rápido demais todos os elementos da
investigação no sistema eletrônico, o que obrigaria o juiz a enviar parte do
processo ao STF.
A relação entre Moro e Dallagnol era tão próxima que abre
espaço para que eles comemorem nas conversas o sucesso de algumas etapas da
Lava-Jato, como se fossem companheiros de trabalho festejando metas
alcançadas. Em 14 de dezembro de 2016, Dallagnol escreve ao parceiro para
contar que a denúncia de Lula seria protocolada em breve, enquanto a de Sérgio
Cabral já seria registrada no dia seguinte (o que de fato ocorreu). Moro
responde com um emoticon de felicidade, ao lado da frase: “ um bom dia afinal”.
A proximidade rendeu ainda lances curiosos. Em 9 de julho de 2015, Dallagnol
saúda o colega: “bem vindo ao telegram!!”. Cinco meses depois, dá dicas ao juiz
de como usar o programa no desktop, enviando no chat um link para o download.
“Se puder me mandar no e-mail, agradeço. O tico e o teco da informática aqui
não são muito espertos”, responde Moro. Em março de 2017, Dallagnol escreve ao
juiz para tirar uma dúvida: ele assina o primeiro nome com ou sem acento? O
motivo é que o procurador estava revisando um livro sobre Moro. “Não uso
normalmente o acento”, responde o juiz. Em julho de 2018, Dallagnol atua como
assessor de imprensa, perguntando a Eduardo El Hage, um colega do Ministério
Público Federal no Rio, detalhes de um pedido de participação de Moro em um
programa do canal fechado HBO: “Eles contataram o Moro aqui e ele queria ter o
contexto e informações que possam ser úteis pra ele decidir se atende”. Em um
dos períodos mais tensos da operação, o que se seguiu à ação do juiz que torna
público o famoso trecho do grampo telefônico em que Dilma Rousseff envia o
“Bessias” para entregar a Lula o termo de posse em seu ministério, Dallagnol
combina em um dos chats com procuradores uma nota de apoio a Moro e repassa ao
grupo uma sugestão do próprio juiz para o texto. Na mesma época, Moro também
recebe um afago e conselho de um interlocutor no Telegram (tudo indica, o
procurador Carlos Fernando dos Santos Lima). “O movimento seria nas sombras,
como você mesmo disse”, escreve, referindo-se ao convite de Dilma para Lula. “O
seu capital junto à população vai proteger durante um tempo. As coisas se
transformam muito rápido.”
As conversas entre membros do Ministério Público Federal
assumem várias vezes o tom de arquibancada, com os membros da força-tarefa
vibrando e torcendo a cada lance da batalha contra os inimigos. Em 13 de julho
de 2015, Dallagnol sai exultante de um encontro com o ministro Edson Fachin e
comenta com os colegas de MPF: “Caros, conversei 45 m com o Fachin. Aha uhu o
Fachin é nosso”. A preocupação da força-tarefa com a comunicação para a opinião
pública era constante. Em 7 de maio de 2016, Moro comenta com Dallagnol que
havia sido procurado pelo apresentador Fausto Silva. Segundo o relato do juiz,
o apresentador o cumprimentou pelo trabalho na Lava-Jato, mas deu um conselho:
“Ele disse que vcs nas entrevistas ou nas coletivas precisam usar uma linguagem
mais simples. Para todo mundo entender. Para o povão. Disse que transmitiria o
recado. Conselho de quem está a (sic) 28/anos na TV. Pensem nisso”.
Procurado por VEJA, Fausto Silva confirmou o encontro e o teor da conversa
entre ele e Moro.
Curiosidades dos bastidores à parte, o que vai definir mesmo
o destino de Moro à luz das revelações dos chats são os trechos nos quais fica
evidente seu papel duplo de juiz e assistente de acusação. A Lava-Jato foi
assumidamente inspirada na Mani Pulite, a Mãos Limpas da Itália, que desbaratou
um gigantesco esquema de corrupção na década de 90, resultando em 2 993
mandados de prisão nos dois primeiros anos de operação. No caso do sistema de
Justiça do país europeu há a figura do magistrado que trabalha no Ministério
Público — mas ele não atua nos julgamentos. A melhor explicação para o
comportamento irregular do atual ministro é que ele tenha se inspirado nessa
figura para pautar suas ações na Lava-Jato. “O Moro confundiu totalmente os
papéis”, afirma o jurista Wálter Fanganiello Maierovitch. “O magistrado que
investiga nunca é o que julga, nem na Itália nem em nenhuma outra democracia do
planeta.”
No Brasil, o papel duplo do juiz viola o artigo 254 do
Código de Processo Penal, que proíbe que o magistrado aconselhe uma das partes
ou tenha interesse em favor da acusação ou da defesa. Essa atuação pode, de
fato, provocar a revisão de atos de Moro. No caso da condenação de Lula, por
exemplo, o STF adiou a discussão para agosto. Será uma decisão complexa e
delicada para a Suprema Corte. Ali, mesmo que alguns ministros já tenham
criticado excessos da Lava-Jato, é difícil qualquer prognóstico. Um dado,
porém, é certo. Fiscalizar o que Moro fez enquanto juiz não significa pôr em
risco os avanços contra a corrupção no Brasil, como sugerem as manifestações
recentes nas ruas das cidades do país. A sociedade brasileira não vai abrir mão
do processo que resultou, pela primeira vez na história, na prisão de políticos
e empresários poderosos.
Embora as conversas mostrem que Moro cometeu infrações, os
crimes punidos ao longo da Lava-Jato gozam de vasta coleção de provas materiais
e orais. A maioria esmagadora das sentenças, aliás, acabou confirmada em outras
instâncias da Justiça. Graças ao esforço dos procuradores de Curitiba,
descobriu-se também o Setor de Operações Estruturadas da Odebrecht,
desenvolvido exclusivamente para administrar o pagamento de propinas efetuado
pela empresa no Brasil e no exterior. O resultado prático e sua importância são
incontestes. Diversos políticos que se locupletaram nos últimos anos ainda
estão presos. Entre eles, Lula, Sérgio Cabral, Eduardo Cunha… O próprio Lula,
mesmo que a suspeição de Moro seja confirmada, pode permanecer preso. Ele já
foi condenado em primeira instância pelo sítio em Atibaia, sentença proferida
pela juíza Gabriela Hardt, e o caso aguarda apenas a decisão do TRF4
(provavelmente favorável à sua condenação). Portanto, não se trata aqui de uma
defesa do Lula Livre nem de estar contra a Lava-Jato. Mas, sim, do direito
inexorável que todos os cidadãos têm de um julgamento justo.
Na terça 2, Moro (que, por sinal, não faz mais parte da
Lava-Jato) ficou sete horas no Congresso respondendo a parlamentares sobre o
caso. Repetiu o que tem dito nas últimas semanas: os diálogos divulgados foram
fruto de um roubo, podem ter sido editados e, mesmo verdadeiros, não apontam
nenhum tipo de desvio. A cada nova revelação, fica mais difícil sustentar esse
discurso. Na sentença em que condenou Lula, o ex-juiz anotou que “não importa
quão alto você esteja, a lei ainda está acima de você”. A frase cabe agora
perfeitamente em sua situação atual. Levado ao Ministério da Justiça para
funcionar como uma espécie de esteio moral da gestão Bolsonaro, ele ainda goza
de grande popularidade, mas hoje depende do apoio do presidente para se manter
no cargo. Independentemente do seu destino, o caso dos diálogos vazados
representa uma oportunidade para que o país discuta os excessos da Justiça e o
fortalecimento dos direitos do cidadão. Um país onde as instituições funcionam
não precisa de nenhum Super-Homem.
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