A MARCHA RUMO AO GOLPE


A crise institucional mudou de patamar. Depois de conseguir a capitulação do Exército no episódio Eduardo Pazuello e mostrar que tem o apoio em bolsões das PMs, Bolsonaro dobra a aposta e prepara novas motociatas como demonstração de força. Mais grave, ele avança em sua estratégia de ameaçar as eleições de 2022. Suas acusações infundadas de fraude e a exigência de voto impresso fazem parte de um movimento calculado para difundir mentiras, aparelhar as instituições e minar a democracia, garantindo o poder à força

Foi um momento de inflexão. Desde a redemocratização, o País considerava que as Forças Armadas estavam cientes de sua atribuição constitucional. A geração de oficiais formada nos anos de chumbo aceitou o novo papel institucional de forma disciplinada, com a exceção de um capitão indisciplinado, expulso após planejar atentados terroristas. Agora, esse militar reformado está saboreando a revanche: conseguiu dobrar a instituição. O comandante do Exército, Paulo Sérgio Nogueira, cedeu às ameaças do mandatário e decidiu não punir o general Eduardo Pazuello por participar de uma manifestação no dia 23 com Bolsonaro e apoiadores. Foi uma flagrante transgressão do código militar, que proíbe atividades político-partidárias, mas Pazuello foi premiado. Continua general da ativa, ganhou um cargo no Palácio do Planalto e virou um símbolo do bolsonarismo para os quartéis.

Ainda não estão claros os motivos que levaram os 15 generais do Alto Comando do Exército a referendarem essa insubordinação. A versão mais favorável à imagem da Força é que os oficiais procuraram evitar uma nova degola na cúpula das três Forças menos de dois meses após Bolsonaro demitir o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, porque este se recusou a aderir ao projeto bolsonarista. Na época, os três comandantes (o general Edson Pujol, o almirante Ilques Barbosa e o brigadeiro Antônio Carlos Bermudes) se demitiram em apoio a Azevedo. Se foi isso, a prática de contemporizar apenas deixou o presidente mais à vontade para politizar a corporação. Outra versão indica que os militares fizeram isso por medo do retorno de Lula em 2022. Seria pior ainda, pois significa que os militares abertamente estão se imiscuindo no próximo pleito, à revelia do desejo da população. Além disso, trata-se de um equívoco. A “ameaça comunista” é um lema anacrônico e sem sentido após 13 anos de governo do PT. Já o risco de um golpe de Bolsonaro é real. Desde a década de 1990 o ex-capitão anuncia que essa é sua intenção. Ele incentivou manifestações pelo fechamento do Congresso e do STF, que estão sob investigação. Instituições de Estado estão capturadas pelo bolsonarismo. O presidente já aparelhou a PF. Também colocou a seu serviço a PGR e a Abin. A Receita Federal foi acionada de forma privada por Flávio Bolsonaro para tentar apurar investigações contra ele. A crise institucional mudou de patamar.

O aparato de segurança representa o maior risco. O mandatário está conseguindo aos poucos cooptar forças policiais nos estados. No Recife, dois civis foram cegados pela truculência da polícia nos atos contra Bolsonaro, no dia 29. O caso levou à queda do secretário de Segurança e do comandante-geral da PM, mas deixou a sensação de que há bolsões dentro das corporações que são mais suscetíveis aos interesses do presidente do que às ordens dos governadores. Não foi o único caso. Um comandante da PM do DF usou em uma cerimônia o slogan eleitoral de Bolsonaro (“Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”). O momento atual é mais grave do que em outras épocas de instabilidade porque a sedição está sendo premiada e já há milícias enraizadas no País, que têm a simpatia do mandatário. Além disso, a população está sendo armada, o que na prática estimula a formação de grupos paramilitares – foi o roteiro seguido por Chávez na Venezuela.

A marcha antidemocrática sobe o tom. O prócer do Centrão e líder do governo na Câmara, Ricardo Barros, já antecipa o desejo de confrontar o STF. “Vai chegar uma hora em que vamos dizer que simplesmente não vamos cumprir mais”, declarou. Ele se referia à decisão da Corte que obrigou à realização do Censo em 2022, mas verbalizou o que os bolsonaristas realmente desejam: atropelar o Judiciário e governar sem amarras, de forma ditatorial. “O respeito a decisões judiciais é pressuposto do Estado Democrático de Direito”, rebateu o presidente do STF, Luiz Fux. Quando é preciso lembrar essa obviedade para o próprio preposto governista no Congresso, fica evidente que as investidas golpistas subiram um degrau.

Politização dos quartéis

É o que mostrou o episódio Pazuello. Se havia dúvidas, não há mais. Bolsonaro conseguiu politizar as Forças Armadas. Ao saírem da linha legalista que adotaram desde a redemocratização, as Forças Armadas regrediram mais de meio século. Os historiadores avaliarão no futuro se o ciclo de normalidade democrática pode ter sido um breve intervalo dentro de uma longa história de crises institucionais. Mas o próprio debate atual sobre o caso representa uma volta aos conturbados anos 1950 e 1960. Em 1955, um presidente em exercício se recusou a punir um coronel que defendeu um golpe contra o presidente eleito, Juscelino Kubitscheck. Nos anos que antecederam o golpe de 1964, caciques políticos tentavam influenciar comandos regionais e tinham oficiais de predileção. O próprio regime militar foi alvo de uma tentativa de golpe interno, em 1977, pelo antigo ministro do Exército, Sylvio Frota, que não aceitava a abertura política (o general Augusto Heleno, atual chefe do Gabinete de Segurança Institucional, era seu ajudante de ordens). O atentado do Rio Centro, em 1981, evidenciou núcleos terroristas dentro do próprio Exército que tentavam sabotar a redemocratização. É esse passado nefasto que foi reavivado pela decisão do Alto Comando do Exército. A corporação saiu diminuída do episódio, e mais distante da sociedade. Ao ceder a um ex-capitão insubordinado e golpista, mostrou que ainda não está preparada para o exercício de seu papel constitucional. Ao impor segredo de um século sobre esse processo, evitou o escrutínio democrático. Na prática, atrelou seu destino ao governo Bolsonaro.

Um desdobramento mais grave do episódio é que ele fortaleceu o bolsonarismo. Abriu o caminho para o mandatário se sublevar contra as instituições e negar o próprio resultado eleitoral de 2022. Deslegitimar as urnas eletrônicas faz parte dessa estratégia. A ideia é instilar dúvidas sobre a lisura do processo para permitir a intimidação de grupos de pressão contra um eventual resultado desfavorável ao presidente no próximo ano, cenário que se torna cada vez mais provável. Essa narrativa é ainda mais importante para o bolsonarismo. Em um evento evangélico transmitido pela TV Brasil, na última quarta-feira, o mandatário voltou a dizer que o pleito de 2018 foi fraudado sem apresentar qualquer evidência. “Fui eleito no primeiro turno. Tenho provas materiais disso, mas a fraude que existiu, sim, me jogou para o segundo turno.” Quem está operacionalizando a mudança nas regras é uma aliada de primeira hora, a deputada Bia Kicis, autora de uma PEC pela volta do voto impresso, que foi alçada à presidência da Comissão de Constituição e Justiça na Câmara (CCJ) após a eleição da nova cúpula do Congresso, em fevereiro. “Não basta aprovar o voto impresso antes da eleição de 2022. A não ser que 100% das urnas estejam equipadas com impressoras já no próximo pleito, continuará a haver desconfiança sobre os resultados. Se houver apenas um projeto-piloto, vamos continuar dizendo que é ilegítimo, vamos continuar desconfiando”, declarou. Para o presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, esse retrocesso pode estimular a compra de votos e facilitar fraudes na recontagem. Mas esse projeto avança. Nesse momento, os bolsonaristas já têm maioria na CCJ, que analisa a matéria, abrindo caminho para a aprovação da mudança. Contam com o apoio até de oposicionistas, como os deputados Aécio Neves (PSDB) e Júlio Delgado (PSB), além de partidos como o PDT, que consideram o voto impresso seja uma forma de atestar a lisura da votação e esvaziar o discurso sobre fraudes.

É um erro. Ceder ao discurso de suspeição fabricado pelo grupo bolsonarista não abrandará o ambiente no Congresso. Apenas aumentará o apetite por novas investidas contra a democracia. Guardadas as devidas proporções, o ato de ceder a Bolsonaro em nome de uma suposta pacificação pode ser comparado, em termos históricos, à fracassada política de apaziguamento que levou grandes potências a aceitar o expansionismo do regime nazista para evitar um conflito iminente. Na história política, essa estratégia ficou associada à crucial conferência de Munique de 1938. Foi uma tese mal-sucedida que acabou, ao contrário, permitindo o fortalecimento do nazifascismo. Contê-lo custou muito mais vidas e só foi possível porque um líder inglês, Churchill, teve visão histórica. Foi inflexível e não cedeu. Quem vai conter Bolsonaro?

A decisão de livrar Pazuello recebeu críticas entre os políticos. “O Alto Comando preferiu se preservar ao invés de preservar o Exército”, condenou o presidenciável Ciro Gomes. O decano do STF, ministro Marco Aurélio Mello, afirmou que “o sentimento é de perplexidade” e que o caso abriu um “preocupante precedente”. Ex-ministro da Defesa no governo Temer, Raul Jungmann sempre confiou que as Forças Armadas não se dobrariam ao presidente. Agora, foi um dos que mais se alarmou: “É hora de reagir e de unidade. Antes que seja tarde”. Bolsonaro evitou comemorar em público a vitória sobre o Exército, mas esse foi um gesto calculado. Ele já marcou um novo ato com milhares de motociclistas, reproduzindo aquele do Rio de Janeiro que teve Pazuello como estrela. Dessa vez, a “motociata” acontecerá em São Paulo, neste sábado, 12, com o apoio dos evangélicos. A expectativa é reunir 100 mil apoiadores. O presidente mentiu mais uma vez sobre a pandemia, ao citar, na segunda-feira, um relatório do TCU que apontava supernotificação de até 50% nos óbitos por Covid. A esparrela foi desmascarada no mesmo dia. O relatório foi incluído sorrateiramente no sistema da Corte por um auditor, sem a anuência oficial. E repassado para o presidente clandestinamente pelo pai do autor, militar amigo de Bolsonaro. O auditor bolsonarista, Alexandre Figueiredo Costa Silva Marques, já havia sido indicado anteriormente pelo presidente para uma diretoria do BNDES. O TCU abriu investigação e pediu abertura de inquérito na PF, mas o incidente mostrou mais uma vez como o mandatário manipula ardilosamente as instituições.

Ataque à imprensa

Afinal, a única agenda de Bolsonaro é desestabilizar o País. “A dúvida não é saber se haverá ruptura, mas quando acontecerá”, já disse seu filho Eduardo, há um ano. A marcha contra a democracia avança. A revista britânica “Economist”, uma das mais influentes do mundo, disse que o Brasil vive a situação mais sombria desde 1980. Foi rebatida nas redes sociais por
23 posts da Secom. Numa constrangedora ignorância sobre o funcionamento da imprensa e sem compreender o texto em inglês, a área responsável pela comunicação da Presidência disse que a publicação fez “panfletarismo juvenil” e “jornalismo militante, antidemocrático e irresponsável”. Na verdade, se o semanário liberal pode ser acusado de algo, é de ter simpatia persistente ao Brasil desde seu primeiro número, há 177 anos. Nesse período, o País assistiu à quartelada que inaugurou a República, o assalto tenentista que levou à ditadura varguista, a tentativa de sublevação contra um presidente eleito e o golpe de 1964, que impôs uma ditadura por 21 anos.

Agora, a revista apenas antecipa que o destino do País depende da derrota de Bolsonaro nas próximas eleições. Mas a decisão sobre o futuro pode vir antes. Passa por garantir que o pleito aconteça e que não seja desvirtuado por Bolsonaro. Ele já anuncia: não aceitará um resultado que não seja sua vitória. O maior risco para o País é subestimar suas ameaças.
Militares receiam onda de indisciplina

De militares de alta patente a oficiais rasos, a avaliação é a mesma: a absolvição de Eduardo Pazuello pelo Exército vai gerar consequências perigosas nos quartéis. O receio é que essa medida provoque uma onda de indisciplina. A impressão, segundo o entendimento de vários militares ouvidos pela ISTOÉ, é que o mandatário dá mostras de que quer formar um Exército bolsonarista. “Corremos o risco de que haja mais manifestações”, disse o general da reserva Paulo Chagas. “Dizer que aquilo que Pazuello fez não era uma manifestação política é uma alegação idiota. Claro que era”.

“À irresponsabilidade e à demagogia de dizer que esse é o ‘meu exército’, eu só posso dizer que esse não é o Exército Brasileiro. Ele é de todos os brasileiros”, afirmou o general Santos Cruz (foto acima).Divulgação

“A politização das Forças Armadas para interesses pessoais precisa ser combatida. É um mal que precisa ser cortado pela raiz”, fulminou.

O ex-chefe do GSI, general Sérgio Etchegoyen chamou o veredito de “indefensável”. A decisão foi na contramão até da opinião do vice Hamilton Mourão, que é general da reserva. Antes da absolvição, ele havia declarado que uma eventual punição de Pazuello seria para “evitar que a anarquia se instaure dentro das Forças Armadas”.

Na parte de baixo da hierarquia, a sensação é de que só não haverá punição se houver manifestações favoráveis ao presidente. Suboficial reformado da FAB, Fabrício Dias Júnior citou o caso de um sargento da Marinha que, em 2019, protestou contra o mandatário e foi alvo de sindicância. “Ele e Pazuello se manifestaram politicamente. Um não foi punido e o outro foi. Isso cria insatisfação na tropa”, afirmou.

Ricardo Chapola