A ROTINA DE UM CADEIRANTE NUMA CIDADE PROJETADA PARA CARROS

Francisco Canindé Gomes, durante venda de cocadas I Fotos e vídeos: Mirella Lopes

Toda segunda, terça e sexta, Canindé vende cocadas de leite ao lado da unidade da Neoenergia da Rua João Pessoa, no bairro da Cidade Alta. Já nas quartas e quintas, ele faz ponto na entrada de uma rede de supermercados no bairro de Dix-Sept Rosado, na Zona Oeste, desde que o movimento no centro de Natal começou a cair.

Ele já conhece os funcionários do supermercado pelo nome e até conta com a ajuda deles para guardar o material de trabalho. Canindé mora há apenas algumas quadras dali. Um caminho que poderia ser percorrido a pé rapidamente em cerca de cinco minutos, se ele não tivesse que fazê-lo em uma cadeira de rodas, numa cidade pouco acessível, principalmente, se você não mora em área nobre.

“Deixe eu lhe contar um fato que aconteceu comigo ontem. Fiquei revoltado porque não é a 1ª vez que isso me acontece, só esse mês foram duas situações em ônibus diferentes da mesma empresa. Eu estava voltando da Cidade Alta e quando fui pegar o ônibus a plataforma enganchou. Uma passageira começou a reclamar na frente de todo mundo dizendo que eu estava ‘atrasando a viagem. Empresário nenhum pega ônibus, eles não vão saber as dificuldades que a gente passa diariamente e um passageira que poderia estar me ajudando a reivindicar nossos direitos, vem me culpar por algo de que sou vítima. O motorista também deveria ter tomado minha defesa. Ele não estava responsável pelo ônibus? Representando a empresa? Devia ter orientado a passageira que aquilo ali acontece porque a empresa não faz a manutenção correta que deveria”, desabafa Francisco Canindé Gomes.

Carros estacionados sobre calçada impedem passagem

 Conheci Canindé durante uma outra reportagem, no bairro da Ribeira. Ele estava em uma parada de ônibus com um semblante sorridente, o que me encorajou a fazer uma aproximação. Conversamos rapidamente sobre acessibilidade no transporte e as calçadas do bairro. Ele me contou que tinha ido renovar o cartão de gratuidade para utilizar o transporte público, que era formado em Serviço Social e se dispôs a fazer uma outra matéria, que você está lendo agora, sobre a rotina dele enquanto cadeirante.

Nos encontramos no meio dessa última semana, durante uma manhã de sol quente. Do supermercado, fomos até a casa dele conversando. Ao longo do caminho, Canindé precisou descer da calçada várias vezes por causa de carros estacionados, dos buracos e, em alguns trechos, por causa da inexistência de calçada.

“Aqui é outro transtorno pra mim, olhe esse calçamento como é que tá! E quando chove isso aqui fica tudo alagado”, aponta durante o caminho.

Sempre que passava para o calçamento de paralelepípedos, a cadeira de rodas tremia tanto, que só imaginava que ela chegaria em casa com alguns parafusos a menos.

“Por causa disso tenho que repor peças e fazer reposição com frequência”, conta.

Canindé comprou sua cadeira de rodas elétrica há dez anos através do financiamento de um banco. Na época que fazia faculdade, ele tinha uma cadeira de rodas do modelo mais simples e pagava um sobrinho para levá-lo todos os dias às aulas.

“Ele me levava e trazia, ficava lá comigo até terminar a aula. Foi quando Deus abriu uma porta pra eu ter a oportunidade de comprar essa cadeira. Foi caríssima, na época custou R$ 10 mil e é uma das mais simples porque quanto mais moderna ela for, mais confortável, mais cara ela é”, explica.

“Tinha dia de eu chegar de meia noite em casa... ônibus quebrado, motorista mal humorado, estresse. Nem culpo os motoristas porque sei que é uma profissão muito estressante. Foi com muita persistência e insistência que consegui chegar onde queria. Estou pensado em futuramente fazer outra faculdade, de pedagogia”, planeja.

Bem humorado, Canindé fala com todo mundo que passa por nós. Conhece a maioria pelo nome e o oposto também acontece, ninguém passa indiferente a ele.

Canindé nasceu sem problema de saúde, mas teve poliomielite na infância, que resultou na atrofia de alguns músculos.

“Eu adquiri a poliomielite quando tinha 1 ano e 6 meses. Minha conta que cheguei até a andar. Tive uma febre e uma desinteria muito grande. Nessa época, nós morávamos no Rio de Janeiro e como lá é tudo distante, para chegar no hospital era a maior dificuldade do mundo e sempre fomos ‘classe C’. Minha mãe ficou vários dias comigo, internado no hospital, até os médicos descobrirem o que é que eu tinha. Meu corpo só está assim como você está vendo porque lá não tínhamos condições de fazer fisioterapia. Os especialistas disseram que eu não teria ficado com essas atrofias se eu tivesse feito”, conta.Em alguns trechos, sequer há uma calçada

A mãe de Canindé foi morar no Rio de Janeiro com família em 1971, perseguindo a tão almejada vida melhor. Mas, em 1981 o grupo acabou voltando para Natal.

“Considero essa minha deficiência não como uma barreira, mas como uma benção. Deus sabe o que faz, tudo na vida tem um propósito. Talvez essa seja minha missão”, afirma confiante.

“Tenho uma auto estima muito forte e procuro não deixar as coisas me abalarem, o psicológico é mais importante de tudo”, acrescenta.

Com planos de fazer uma nova faculdade, dessa vez de pedagogia, Canindé conta que sofreu muito bullying na vida escolar, situação que só mudou depois que ele ingressou no ensino superior.

“São pessoas com um pensamento diferente, mais esclarecidas. Não que eu esteja discriminando que não pôde se formar, mas as pessoas da faculdade me acolheram muito bem Graças a Deus tive ótimas amizades e professores excelentes, gostei muito”, relembra.

Além da graduação, ele também tem uma pós-graduação em Direito Sociojurídico. Consciente de seus direitos, ele ajudou um amigo, também cadeirante, a concorrer na eleição para a Câmara Municipal de anos anteriores.

“Ele só obteve 216 votos porque a maioria dos cadeirantes não se uniu. Ele achava que não ganharia porque não tinha dinheiro. Disse que dinheiro era importante sim, mas quando você se propõe a defender uma causa, a gente consegue. Mesmo assim, não acreditaram. Quando sonhamos juntos, acaba dando certo. Mas, as pessoas não acreditaram e acabou dando errado”, lamenta.

No caminho para casa, ele lembra de uma vez que ficou no vácuo ao pedir ajuda a um vereador de Natal para melhorar as condições de acessibilidade de uma rua do bairro.

“Quando chega tempo de eleição, eles [os candidatos a vereador] querem resolver os problemas do bairro todo, dos moradores. Mas, quando ganham...banana pra gente. Nós que ficamos no sofrimento, mas os culpados somos nós mesmos porque escolhemos pessoas erradas para nos representar”, critica.




Canindé, finalmente, ao chegar em casa. Na foto, ele posa ao lado da mãe

Passando, literalmente, por cima de pau e pedra. Chegamos na casa dele, que mora na mesma rua da mãe e outros familiares, pertinho da linha do trem, que ele pega sempre que vai para o centro da cidade.

“Desço na Ribeira e subo a ladeira para a Cidade Alta”, conta sorrindo com minha feição de surpresa.

Nosso encontro ocorreu na mesma semana na qual desembargadores da 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte (TJRN) decidiram, por unanimidade, que a Prefeitura do Natal reforme e instale equipamentos que garanta acesso e uso do prédio do Distrito Sanitário da Zona Sul pelas pessoas portadoras de deficiência ou mobilidade reduzida, sob pena de multa única de um milhão de reais.

Desde 2023, o município também têm realizado uma série de reformas para padronização de calçadas em algumas ruas e avenidas de Natal. O investimento é de cerca de R$30 milhões, mas essa cidadania ainda não chegou no bairro de Canindé.

Beneficiário do BPC (Benefício de Prestação Continuada), Canindé faz da venda das cocadas um complemento da renda. Ao final da nossa conversa, sob a sombra de uma árvore que fica em frente à casa da mãe, de quem é vizinho, ele faz um novo convite:

“Depois vamos me acompanhar pegando ônibus!”.

A pauta está garantida.

 

Fonte Portal Saiba Mais