80 ANOS DE RAUL SEIXAS: O TANGO QUE DENUNCIA O CAOS E O COWBOY QUE REJEITA HERÓIS
Em 28 de junho de 2025, completariam 80 anos do nascimento de Raul Seixas (Salvador, 28/06/1945 – São Paulo, 21/08/1989). Ícone absoluto do rock brasileiro, Raul não se limitou a fazer música: foi um profeta de contradições, um poeta da insubmissão e um agudo cronista de crises políticas e morais que teimam em se repetir. Para celebrar esse aniversário, revisitamos duas obras-primas de 1987 – “Cowboy Fora da Lei” e “Cambalache” (tango de Enrique Santos Discépolo, em versão de Raul) –, e mostramos como elas mantêm sua força profética em 2025, à sombra da desinformação, da desconfiança nas instituições e da “bagunça de valores” que nos cerca.
Vacina contra heróis fabricados
“Cowboy Fora da Lei” nasceu em Uah-Bap-Lu-Bap-Lah-Béin-Bum! (março/1987), disco gravado entre fevereiro e dezembro de 1986 em São Paulo e São Bernardo do Campo. Partindo de um refrão rabiscado em 1973, Raul e Cláudio Roberto deram forma a uma canção de country rock pontuada por banjo e violão de aço – timbres que soavam exóticos no Brasil da época. Mas o que mais impressiona é a densidade do texto, que, em menos de três minutos, sintetiza medos existenciais e desconstrói o culto ao poder.
Não perca nada!
Logo no primeiro verso, o “cowboy” confessa seu receio à figura materna:
“Mamãe, não quero ser prefeito
Pode ser que eu seja eleito
E alguém pode querer me assassinar”.
Em 2025, quando parlamentares e repórteres ainda lidam com ameaças e agressões, esse trecho soa como um presságio. Raul expõe a face sombria da política: a promessa de servir ao povo convive com o risco de virar alvo de violência – seja física, judicial ou midiática.
Em seguida, ele desmonta o mito da verdade oficial:
“Eu não preciso ler jornais
Mentir sozinho eu sou capaz
Não quero ir de encontro ao azar”.
Neste ponto, o alerta ecoa mais alto do que jamais: na era das redes sociais e dos algoritmos que reforçam bolhas de opinião, cada um de nós pode, sem ajuda, espalhar mentiras. A “vacina” raulseixista é o espírito crítico: questionar notícias, checar fontes e recusar narrativas prontas.
A canção avança, então, para uma invocação quase blasfema:
“Oh, coitado, foi tão cedo
Deus me livre, eu tenho medo
De morrer dependurado numa cruz”.
Ao conectar seu temor ao martírio de Jesus Cristo, Raul sublinha que a dissidência carrega peso simbólico e real: ativistas, denunciantes e até influencers corajosos, ainda hoje, pagam com reputação – ou pior – por desafiar convenções.
No refrão, o manifesto atinge seu auge:
“Eu não sou besta pra tirar onda de herói
Sou vacinado, eu sou cowboy
Cowboy fora da lei”.
Ser “vacinado contra heróis” significa imunizar-se contra lideranças carismáticas e vazias, tão comuns na política e nas redes de 2025, onde influencers compram likes e políticos seduzem com retórica inflada. Em entrevistas, Raul citou Tancredo Neves, Martin Luther King Jr. e Mahatma Gandhi como exemplos de figuras admiradas, mas alertou que ninguém está livre de ter sua imagem manipulada pela história e pela mídia. E, embora não apareça na letra, ele mesmo afirmava ter tido contato com John Lennon durante sua passagem pelos Estados Unidos em 1974, vendo ali o espelho da contestação global que o rock podia oferecer .
Por fim, o cowboy rompe o escapismo:
“O Durango Kid só existe no gibi
E quem quiser que fique aqui
Entrar pra história é com vocês”.
Em vez de nos acomodar em narrativas de fantasia, Raul nos chama ao protagonismo real: é na vida concreta – votos, protestos, conversas difíceis – que se reescreve o destino coletivo.
O tango do caos moral
No mesmo álbum, Raul emprestou sua irreverência ao tango “Cambalache”, de Enrique Santos Discépolo (1934), refazendo-o em português. Discépolo compôs a letra em plena “Década Infame” argentina, censurada por criticar golpe após golpe e a corrupção endêmica . Raul manteve cada sílaba, mas injetou energia roqueira:
“Que o mundo foi e será uma porcaria, eu já sei
Em 506 e em 2000 também
Que sempre houve ladrões, maquiavélicos e safados
Contentes e frustrados, valores, confusão”.
Esses primeiros versos, ribombeando em português, soam como um jornalista da consciência: as mesmas mazelas de 1934 – a impunidade, a desigualdade, o cinismo – atravessaram o tempo para nos assombrar em 2025, entre escândalos financeiros e desastres ambientais.
Raul prossegue, apontando o cerne do “cambalache”:
“Mas que o século XX é uma praga de maldade e lixo
Já não há quem negue
Vivemos atolados na lameira
E no mesmo lodo todos manuseados”.
Em pleno século XXI, esse “lixo moral” se manifesta em mercados predatórios, polarização digital e no colapso ético de instituições que deveriam servir ao bem comum. A leitura raulseixista lembra que protestos saem das ruas, mas também se travam nos bastidores de gabinetes e de feeds de notícias.
Atingindo o ápice da denúncia, Discépolo faz uma provocação que Raul ecoa:
“Hoje em dia dá no mesmo ser direito que traidor
Ignorante, sábio, besta, pretensioso, afanador”.
Num mundo onde algoritmos não distinguem coragem de demagogia, essas linhas gritadas em português pedem que distingamos — na prática — quem se empenha pelo coletivo e quem se aproveita da confusão para lucrar.
Um legado — e um desafio — para 2025
Celebrar Raul Seixas aos 80 anos é perceber que ele não ofereceu respostas fáceis nem slogans vazios. Seu legado é um chamado à rebeldia lúcida, à coragem de não se conformar: Vacinar-se contra a idolatria significa questionar heróis de ocasião — seja o político carismático, o influencer de plantão ou até o guru corporativo — e exigir prova de compromisso ético antes de conceder atenção ou voto.
Assumir responsabilidade informativa é mais do que compartilhar: é checar, confrontar contrapontos e manter acesa a chama da dúvida metódica, escudo contra as fake news que minam a coesão social.
Valorizar a memória crítica significa revisitar não apenas as datas oficiais, mas as histórias de quem sofreu por recusar o silêncio — de Cristo a Lennon, de Tancredo a King, de Gandhi a Discépolo — e traduzir esses exemplos em prevenção à intolerância e ao autoritarismo.
Protagonizar o presente ultrapassa o entretenimento digital: pedir mais, envolver-se em causas concretas, frequentar assembleias, discutir políticas públicas. A história não se faz nos palanques vazios nem nos cafés virtuais, mas na arena real, onde decisões moldam vidas.
Comemorando com propósito
Ao ouvir hoje “Cowboy Fora da Lei” e “Cambalache” em sequência, temos diante de nós um duplo espelho: um cowboy que recusa virar herói de papel e um tango que desnuda a podridão ética de todos os tempos. Essa obra híbrida – country rock, poesia filosófica e tango transgressor – permanece viva, pulsando entre playlists, trilhas de séries e corações inquietos.