PLACA MERCOSUL: SEGURANÇA FALHA GERA CLONAGENS E ATÉ VENDA NO MEIO DA RUA

Criada para ser um dispositivo de identificação veicular mais seguro, a placa Mercosul não está imune a clonagens, falsificações e comércio ilegal.

Longe disso. Nos últimos meses, têm sido frequentes os casos de veículos apreendidos com placas falsas estampadas no novo formato, além de flagrantes de venda realizada no meio da rua, uma prática irregular, como também comércio de "réplicas" pela internet - conforme noticiado por UOL Carros em agosto.

Em julho, a Polícia Civil de São Paulo prendeu na capital paulista dois homens "por integrarem quadrilha especializada em vendas de carros de procedência ilícita para o crime organizado". Com eles, havia dois veículos roubados no Rio de Janeiro e que estavam à venda, por preço muito inferior ao de mercado, com placas no padrão Mercosul clonadas.

Um mês antes, a Polícia Civil da Bahia prendeu dois suspeitos e desmantelou uma oficina de desmanche em Camaçari, próximo a Salvador, com três veículos roubados prontos para receber placas Mercosul adulteradas.

De acordo com empresas fabricantes e estampadoras de placas, por trás do problema está a falta de controle adequado do processo de produção, instalação e rastreamento das novas placas pelos Detrans (Departamentos Estaduais de Trânsito) nos quais o novo padrão já está vigorando.

Hoje, a nova placa é emitida no Rio de Janeiro, onde estreou em setembro de 2018, além de outros oito Estados: Amazonas, Bahia, Espírito Santo, Paraná, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul e, mais recentemente, Piauí e Paraíba. O Contran (Conselho Nacional de Trânsito) determina que o formato seja adotado em todo o território nacional até 31 de janeiro de 2020.

Esses procedimentos estão previstos na Resolução 780/2019 do Contran, em vigor desde 26 de agosto, a mais recente a tratar das diretrizes para produção e comércio do novo padrão veicular - que, ao menos em tese, deveriam ser bem mais rígidas em relação às adotadas para a placa cinza.
'Falta rastreabilidade total'

"Os Estados não estão cumprindo a rastreabilidade total da fabricação, da estampagem até a colocação das placas, com possibilidade de auditar o processo até que a placa seja vinculada ao veículo. Além disso, em vários Estados a comercialização é feita por atravessadores, elevando o preço ao consumidor final, e não há controle da emissão de nota fiscal eletrônica, abrindo margem para sonegação", afirma Danilo Costa, advogado da ANEPV (Associação Nacional de Estampadoras de Placas Veiculares)

Segundo Costa, "os Detrans deveriam fiscalizar a regularidade das atividades das estampadoras [as empresas que inserem os elementos gráficos e os caracteres das placas] com controle e gestão do processo produtivo". "Só que hoje a gente vê que os Detrans não têm capacidade de pessoal nem sistêmica para fazer essa fiscalização", critica.

"Já temos notícia de que estampadoras cadastradas e credenciadas têm um local em que fornecem sua senha e login a um terceiro, que, em endereço diverso daquele autorizado, faz a confecção da estampagem. Por fim, há Estados, como a Bahia, que implantaram a placa Mercosul, mas ainda sem qualquer regulamentação. Isso inviabiliza o controle, a gestão e a fiscalização", conclui.

Além das prisões na Bahia por clonagem, no mês passado uma empresa foi flagrada comercializando placas Mercosul no meio da rua em Salvador, prática proibida pela legislação. Duas funcionárias foram fotografadas anunciando o item em um semáforo, em meio aos carros parados.
Detrans cobram esclarecimentos do Denatran

Já a AND (Associação Nacional de Detrans) afirma que está aguardando até hoje reposta do Denatran (Departamento Nacional de Trânsito) a um ofício, enviado no fim de julho, com "dúvidas técnicas, jurídicas e administrativas encaminhadas por todos os Departamentos Estaduais de Trânsito". A associação também diz que falta, inclusive, uma padronização do processo para reconhecimento de clonagem de placas de parte do órgão federal, para aplicação pelos Detrans.

"O questionamento feito pela AND ao Denatran após a Resolução 780 não foi respondido até agora. No recente encontro de diretores foi aprovado unanimemente que reiterássemos esse ofício e cobrássemos as respostas devidas", pontua Larissa Abdalla Britto, presidente da AND e diretora do Detran do Maranhão, que ainda não começou a adotar o novo padrão veicular.

Segundo Britto, o ofício cobra esclarecimentos sobre a ausência até hoje de uma base de dados operante para consulta das placas, compartilhada pelos países integrantes do Mercosul (Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai), prevista na resolução do Contran. A associação também questiona a obrigatoriedade de credenciamento das empresas fornecedoras das placas, substituindo a licitação; e como será feita a fiscalização desses fornecedores.

"O sentido da Placa Mercosul não é só a placa, mas a integração das bases entre os países integrantes do bloco. Nada foi feito nesse sentido, o que é primordial para os Detrans dos Estados que fazem fronteira com outros países, por questão de fiscalização de trânsito e, principalmente, de segurança. Perguntamos se isso ainda será feito, como e quando", salienta a presidente da AND.

Especificamente quanto à fiscalização de clonagens, Britto afirma que "nunca foi padronizado o processo administrativo de reconhecimento de clonagem de placas" após a constação de uma fraude, o que possibilitaria sua troca por outra pelo proprietário legítimo, para evitar transtornos. "Cada Estado tem o seu procedimento próprio. Gostaríamos de ter um procedimento único para todos".

Ainda de acordo com a associação dos Detrans, a resolução determina que haja credenciamento para a implementação das placas, mas os tribunais de contas e as procuradorias gerais de alguns Estados querem via licitação. Entendemos que os Estados devem ter autonomia para decidir como fazer e não a União", completa.
Denatran não se manifesta

UOL Carros questionou durante mais de um mês o Denatran sobre as questões enviadas pela ANG e as críticas da associação de estampadoras, sem obter resposta.

Por sua vez, o Detran da Bahia, onde mais de 500 mil veículos já rodam com a placa Mercosul, "tem trabalhado junto com o Ministério Público e cinco associações de estampadores de placas, na elaboração de uma portaria estadual para a regulamentação de questões procedimentais".

Quanto à denúncia de sonegação no processo de envio da nota fiscal eletrônica, o Detran-BA, respondeu que "já provocou a Secretaria da Fazenda do Estado para que seja feito o acompanhamento dos mecanismos de controle e a avaliação da necessidade de notificações". Sobre o alegado repasse de login e senha a terceiros, de parte de estampadoras credenciadas, o órgão estadual diz que "não tem conhecimento do fato".
Placa perdeu elementos de segurança

Um dos aspectos que pode dificultar a fiscalização de clonagens é que hoje existem quatro tipos de placas Mercosul. Isso acontece porque, desde sua estreia no Rio, há pouco mais de um ano, o padrão original foi sendo modificado, com a retirada de itens físicos de segurança e identificação - sempre com a alegação, de parte do governo federal, de reduzir custos e burocracia.

Na última atualização, determinada pela Resolução 780, a placa perdeu o efeito difrativo, semelhante a um holograma, aplicadas sobre os caracteres e na borda externa; e as chamadas "ondas sinusoidais", grafadas no fundo branco do equipamento. No lugar do efeito difrativo, as inscrições passam a vir na mesma cor dos caracteres, praticamente desaparecendo.

O padrão Mercosul passou por outras duas modificações visuais, também relacionadas a itens de segurança.

A primeira delas aconteceu já em setembro do ano passado, por meio da Resolução 741, que retirou o lacre, utilizado até hoje na placa cinza e substituído pelo QR Code - que permite rastrear todo o processo de produção da placa. O fim do lacre, de fato, ajudou a reduzir o preço da placa Mercosul no Rio.

Em novembro de 2018, outra resolução (748) do Contran determinou a exclusão da bandeira do Estado e do brasão do município de registro do veículo.