SEM CARNAVAL, SALVADOR PASSA POR UM MOMENTO DE TRANSFORMAÇÃO PÓS-AXÉ MUSIC
O Carnaval de Salvador é uma espécie de termômetro para a festa no resto do Brasil. Mas, há dois anos, por causa da pandemia da Covid-19, a cidade não pulsa a energia que lhe caracteriza em todo o verão há décadas.
E mesmo com as restrições deste período, uma ebulição cultural vem mudando a cara do Carnaval no estado, mas que, sem a realização da festa na rua, não encontra onde extravasar esta transformação cultural.
Um ponto, no entanto, é central nesta transformação: o enfraquecimento de uma indústria de entretenimento que ajudou a forjar a ideia de que a música baiana é sinônimo de Carnaval.
Sem hits nacionais há muitos anos, a axé music segue movimentando seus blocos e trios elétricos, desta vez no formato de festas fechadas, mas sem a força que tinha no final do século 20. E à medida em que este formato vai perdendo a importância, outras manifestações culturais, mais inclusivas, vão ocupando o vácuo deixado pelo mainstream do Carnaval baiano. A pandemia só dificulta a percepção sobre uma transformação que vem acontecendo há cerca de uma década na capital baiana.
“O Carnaval é realmente algo muito ligado à história da nossa formação”, explica o guitarrista do BaianaSystem, Roberto Barreto, emendando o momento atual com a história da festa na Bahia. O grupo, um dos principais motores da transformação que vem acontecendo em Salvador na última década, aproveita o segundo ano sem Carnaval para lançar o minidocumentário “Manifestação – Carnaval do Invisível”, feito em parceria com o serviço de streaming Amazon Music.
O curta de 23 minutos enfileira depoimentos sobre a importância do Carnaval para a cidade ao mesmo tempo em que reúne diferentes momentos musicais e políticos do grupo baiano.
“É muito emblemático que essas duas coisas aconteçam nos anos 1980, primeiro com os blocos afro e afoxés começando a se constituir e a acontecer como a coisa mais importante do movimento racial até então, seguido da máquina mercadológica que se organizou para pegar aquele boom e aquela música”, continua o guitarrista.
“Isso é um reflexo de como a própria sociedade utiliza a matéria-prima, dos mecanismos que se tem para que aqueles espaços sejam ocupados pelo mercado e fica explicitado de uma maneira industrial neste período da axé music.”
O guitarrista reforça que a monocultura de uma cena musical que não é um gênero musical, acabou por esgotá-la.
“Mercado não tem pensamento cultural, não tem time, ele vai até aquilo secar e acho que foi isso que aconteceu de uns dez anos pra cá. A fonte secou e com isso surge a necessidade de um grito, porque o Carnaval não é isso. O Carnaval é ligado à cidade e às suas manifestações. Por isso, acredito que o poder público, governo e prefeitura, têm uma obrigação de regulamentar isso, porque o mercado não vai fazer isso.”
Orgulho baianoACM Neto durante a inauguração do museu interativo dedicado ao Carnaval baiano, em 2018 / Wikimedia Commons
O produtor cultural, jornalista e escritor Luciano Matos, que acaba de lançar o livro “O Canto da Cidade – Da matriz afro-baiana à axé music de Daniela Mercury” (Edições Sesc), associa a ascensão da axé music ao período em que o então político Antônio Carlos Magalhães, o ACM, dava as cartas na política do estado.
“Ele foi muito inteligente ao utilizar o bairrismo, o orgulho da Bahia, para se estabelecer politicamente, e sempre fez isso em várias formas. A música foi uma delas”, fala o jornalista sobre a relação entre a família do ex-governador e senador pelo estado com a imprensa e a produção de eventos e de artistas exaltando o estado, a música e o Carnaval de Salvador.
“Não existia uma Secretaria de Cultura, por exemplo. Era Secretaria de Cultura e Turismo, e quem era beneficiada era essa galera, porque tinha essa ideia de vender essa Bahia festeira, alegre, e a axé music fazia isso muito bem”, continua Matos.
“Não existia um estímulo à cultura nem lógica de políticas culturais, era uma política de balcão que beneficiou essa turma que ganhou muito dinheiro e se beneficiou de várias formas, desde horários no Carnaval, benefícios econômicos, benefícios em espaços, como lugares nas rádios… A indústria da axé music não tem mais esse poder, hoje é o sertanejo.”
“Axé music abrange um conjunto de gêneros carnavalescos entre os vários estilos musicais que ecoam na paisagem sonora de Salvador em suas festas cotidianas, profanas e religiosas e, no contexto do carnaval, continua atraindo milhares de foliões do Brasil e do mundo”, continua a antropóloga Goli Guerreiro, autora do livro “A Trama Dos Tambores – A Música Afro-Pop de Salvador” (Editora 34).
Ela discorda que a axé music esteja morta, devido à perenidade de seus hits, e reforça: “Para a maioria dos sudestinos, a axé music se confunde com samba-reggae, o estilo criado pelos blocos afro-carnavalescos, que foi apropriado pelas bandas de trio, comandadas por artistas brancos.”
Ivete Sangalo, estrela do axé no Brasil, em cima do seu bloco, em 2012 / Wikimedia Commons
“Nenhuma manifestação cultural morre”, continua a socióloga e crítica musical Pérola Mathias também com ressalvas sobre esta morte da axé music. “A história não chegou ao fim, a canção não morreu, o rock não morreu, como estilo musical é que a axé music não morreu mesmo. Como dizer que morreu se os artistas estão todos aí, na ativa, gravando, lançando, vendendo? O que foi sendo debatido e combatido – a passos lentos – é o o modelo de negócio entre empresários, gravadoras, veículos de mídia, artistas e o estado que ele gerou.”
Luciano endossa a forma como o gênero perdeu a força com o passar dos anos.
“Acho que hoje resta muito pouco disso, os artistas que permaneceram em evidência seguem o que está na moda, como funk, sertanejo, esse forró mais novo. A indústria da axé music não é mais tão forte, mas ainda existe, especialmente em Salvador, onde tem sua força e muito mais por um prestígio, entre aspas, das relações com os poderes público e privado, que têm força de de produzir eventos, captar dinheiro e lançar artistas.”
É difícil definir o que é axé music hoje. Para mim, são artistas veteranos tentando se manter, poucos artistas novos tentando – e não conseguindo – um lugar nesse mercado do mainstream e uma indústria vivendo do prestígio e dos contatos do passadoLuciano Matos, produtor cultural, jornalista e escritor
A força do pagode baianoEm 2010, a festa do Centro Histórico de Salvador / Wikimedia Commons
Mas todos concordam que a Bahia passa por um momento culturalmente muito rico. Luciano fala da força do pagode baiano, que apesar de alguns de seus nomes (como Harmonia do Samba, É o Tchan e Psirico) entrarem no caldeirão de influências da axé music, tem uma sonoridade muito própria, derivada do samba de roda do Recôncavo Baiano.
“O pagode é muito popular mesmo, nos guetos e nos bairros populares, e conta com uma vertente mais contemporânea que vai mesclando com eletrônica, com trap… Em Salvador basicamente o que mais se ouve hoje é isso”.
“E tem essa sonoridade que vêm do interior, como o arrocha, por exemplo, que é uma coisa que surge originalmente na região metropolitana, em Candeias, e que também deriva do sertanejo e da música romântica, com aqueles tecladinhos, e outras coisas vão surgindo e sumindo”, continua o jornalista, listando também o piseiro como uma nova referência musical no estado.
Pérola lista nomes como Attooxxa e Afrocidade, além do BaianaSystem, como nomes que surgem a partir do vácuo deixado pela axé music, enquanto começa a listar uma série de artistas que estão em diferentes níveis de popularidade.
“Vandal, Trap Funk & Alivio, Ticia, Illy, Rachel Reis, A Travestis, A Dama, Robyssão, O Poeta, Yan Cloud, Nara Couto, Luedji Luna, Giovani Cidreira, Jadsa, Maglore e Teago Oliveira, Melly, o selo Batekoo, Larissa Luz, Japa System, O Quadro, Josyara, Jotaerre, é muita gente”, diz Pérola, além de listar gente de gerações anteriores que conversam com o atual momento, como Lazzo Matumbi, Roberto Mendes, Mateus Aleluia, Mou Brasil, a Orquestra Rumpillez, entre outros. “Posso passar um dia inteiro falando”, brinca.
O guitarrista do BaianaSystem volta a falar do passado para explicar o presente. “Isso de não ter Carnaval é um momento para trazer essa discussão para as pessoas. Falar da chegada dos iorubás no século 18 para o século 19, e como isso foi fundamental na formação de Salvador, como essas pessoas definiram essa cultura.”
Acho que o Carnaval não é uma festa, ele é efetivamente uma experiência social que tem que ser entendida dessa forma, que traz essa coisa lúdica, a grande magia da história, que é que onde acontece Carnaval, aquilo se reflete na cidade e nas pessoasRoberto Barreto, guitarrista do BaianaSystem